27 março 2018

"Ecos da Ribalta": homenagem a Carmen Dolores


Carmen Dolores encarnando Isabella, na tragicomédia "Dente por Dente" ("Measure for Measure"), de William Shakespeare, numa versão de Luiz Francisco Rebello, levada à cena pelo Teatro Moderno de Lisboa, com encenação, cenários e figurinos de António Pedro, no Cinema Império, em 1964.
© José Marques / Museu Nacional do Teatro (MNT 248870) [MatrizNet]


O teatro para mim é, cada vez mais, uma verdade sem grandes artifícios, porque a magia está sempre lá, na comunhão que se estabelece, na ideia que corre célere e é apanhada, num relance, pelo espectador atento e disponível. O teatro é aquele pulsar de corações contentes. O teatro é aquele silêncio quase sufocante à espera do imprevisto. O teatro é feito de pedaços de vida, juntamente com pedaços de sonho.
É o gesto que hoje foi diferente, porque se soltou de mim, sem eu dar conta, e foi registado por aquele espectador que está ali para sentir, para vibrar connosco. É esta lágrima suspensa que eu não sei se hoje vai rolar pelo rosto congestionado de dor ou se permanece feita lago, nos olhos de expressão magoada. É estarmos ali «vivos», em comunhão uns com os outros. É esta aragem que junta no ar as nossas respirações e faz do espaço uma amálgama de sentimentos que se confundem entre si.
O teatro é o efémero que, através da nossa memória, pode acompanhar-nos a vida inteira.

CARMEN DOLORES (in "No Palco da Memória", Lisboa: Sextante Editora, 2013 – p. 99-100)


Meus queridos autores, que tanto me destes sem pedir nada em troca. Claro que nós, intérpretes, também damos tudo! Mas, em relação à poesia, ela é-me tão necessária, tão verdadeiramente vital para o meu equilíbrio, que nunca representará qualquer espécie de sacrifício, pelo contrário, ela é a minha evasão (e como eu gostava de transmitir esse sentimento aos outros que andam por aí perdidos, a aturdir-se por veredas sem saídas!), ela é a minha melhor companheira nos momentos bons e nos menos bons.

CARMEN DOLORES (in "No Palco da Memória", Lisboa: Sextante Editora, 2013 – p. 32)


A voz, ex-libris da identidade que a definiu, tornou-a referência na comunicação em língua portuguesa, ao serviço da grande literatura (sobretudo poesia), que tem divulgado encantatoriamente. No teatro, no cinema, na televisão, em recitais, em livros, em conferências, Carmen Dolores transformou a carreira pessoal numa obra de abertura aos outros, de acrescentamento dos outros, ajudando a despertar para a cultura várias gerações de nós, gerações que lhe são para sempre devedoras [...]. Carmen Dolores soube abandonar os palcos em apoteose — na peça Copenhaga, superiormente encenada por João Lourenço — mas não o público, que a esse continua ligada pela escrita (fascinantes as suas memórias), pelo convívio (é uma oradora notável), pela disponibilidade de subtilíssimas atenções. A busca da harmonia e da sabedoria, da solidariedade e da criatividade marcou-a indelevelmente, corajosamente veja-se a sua lucidez nos ímpares Comediantes de Lisboa e Teatro Moderno de Lisboa, por exemplo; veja-se a sua intensidade nas inigualáveis Espingardas da Mãe Carrar e Danças da Morte (as duas magníficas versões de Jorge Listopad), por exemplo. Maravilhosa Carmen Dolores!

FERNANDO DACOSTA (in "Vozes Dentro de Mim", de Carmen Dolores, Lisboa: Sextante Editora, 2017 – contracapa)


Carmen Dolores [resenha biográfica no site do >> Instituto Camões] é, indiscutivelmente, uma das mais notáveis actrizes portuguesas de sempre e não apenas do período que vai, sensivelmente, da II Guerra Mundial até 2005 (ano em que se retirou). Testemunham-no aqueles que a viram e ouviram ao vivo em palco ou em saraus de poesia e também os documentos áudio e audiovisuais que existem da sua arte na rádio, no disco, no cinema e na televisão. De entre todos estes meios, o que sempre mais a cativou foi a rádio, onde começou a dizer poesia, aos catorze anos de idade [na Rádio Sonora, de Lacombe Neves, à rua Morais Soares, em Lisboa], actividade que manteve pelos anos fora, a par do teatro radiofónico (peças e obras romanescas por episódios, vulgo folhetins). Uma paixão perpétua, como a própria actriz tem reafirmado em várias entrevistas, aproveitando para denunciar a lastimável ausência de teatro nas hodiernas ondas hertzianas e também a míngua de poesia dita por categorizados recitadores. Em ambos os campos Carmen Dolores deu cartas na rádio portuguesa, sendo de menção obrigatória os espaços "Tempo de Poesia" (de Carlos Queiroz), "Poesia, Música e Sonho" (de Miguel Trigueiros), "Teatro Radiofónico" (de Virgínia Victorino, usando o pseudónimo Maria João do Valle), "Rádio-Drama" (de Alice Ogando), "Teatro das Comédias" (de Álvaro Benamor), "Noite de Teatro", "Tempo de Teatro" (de Fernando Curado Ribeiro e Eduardo Street) e "Teatro Imaginário" (de Eduardo Street), sem esquecer os muitos folhetins, quer na Emissora Nacional quer no Rádio Clube Português, entre os quais "O Rosário" (de Florence Louisa Barclay), "Tristão e Isolda", "Retrato de uma Senhora" (de Henry James), "A Paixão de Raquel" (de Wilkie Collins), "Penélope, a Rainha Solitária" (de Claude Meillan), "Guerra e Paz" (de Lev Tolstói), "História da Rainha Santa", "Eurico, o Presbítero" (de Alexandre Herculano), "Esteiros" (de Soeiro Pereira Gomes) e "Barranco de Cegos" (de Alves Redol). São disso prova os mais de setecentos registos guardados no arquivo histórico.
Pelo relevante serviço que prestou à rádio pública, todas as acções que a mesma desenvolva em homenagem à emérita actriz serão sempre poucas. Nesta ordem de ideias, cumpre-me aplaudir o realizador João Pereira Bastos pelo ciclo, em quatro capítulos, que em boa hora consagrou a Carmen Dolores, no seu programa "Ecos da Ribalta" [>> RTP-Play]. Foi a oportunidade que muitos ouvintes tiveram de descobrir ou revisitar quatro magníficas peças de teatro e uma mão-cheia de poemas, uns retirados do arquivo histórico (programa "Poesia, Música e Sonho") e outros extraídos do CD "Poemas da Minha Vida" (Dito e Feito, 2003). No caso das peças, apenas uma – "A Súplica", de Fernando Dacosta – não era estranha aos meus ouvidos. As outras três – "A Gaivota", de Anton Tchekov; "Um Mês no Campo", de Ivan Turgueniev; e "Na Vida Como no Palco", de Clifford Odets – nunca as havia escutado, simplesmente porque foram produzidas/emitidas antes de eu ter nascido, sem que nunca mais tenham sido repostas por alguma das antenas nacionais da rádio estatal, Antena 1 ou Antena 2 (é possível que muitas tenham sido retransmitidas pela RDP-Internacional enquanto Eduardo Street lá permaneceu, em regime de quase 'emprateleirado', mas essas estavam fora do meu alcance auditivo). E muitas mais dezenas de peças interessantes haverá decerto no arquivo (com ou sem Carmen Dolores no elenco) que são desconhecidas ao escrevente destas linhas e, bem assim, aos ouvintes do mesmo escalão etário e mais novos. Por conseguinte, e sem prejuízo do resgate das mais bem conseguidas realizações, para o programa "Memória" ou para outro espaço a criar na grelha da Antena 2, importa que todo o acervo de teatro radiofónico seja disponibilizado na plataforma RTP-Arquivos, a fim de que possa ser fruído por todos quantos apreciam a nobre e difícil arte de representar só com a voz. Um espólio de tão elevado valor cultural não pode permanecer fora do alcance da comunidade: podendo aceder-lhe, os cidadãos de hoje têm a oportunidade de se enriquecerem intelectualmente e, por arrasto, de cultivarem a memória dos actores, "encenadores", realizadores e técnicos que deram o seu melhor para que as obras fossem audíveis e cativantes. Penso, aliás, que essa é a melhor forma de prestar tributo aos artistas e aos briosos profissionais do "teatro do imaginário" (e da arte de Talma, genericamente entendida). Vale mais do que mil estátuas ou nomes de ruas, praças e pracetas.
Aqui ficam as sinopses e os links relativos às quatro edições do programa "Ecos da Ribalta" consagradas à arte de Carmen Dolores:


ECOS DA RIBALTA | 20 Dez. 2017 [>> RTP-Play]
  1. Poema "Quase", de Mário de Sá-Carneiro, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  2. Poema "A Rainha de Kachmir", de Gomes Leal, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  3. Peça "A Súplica" (monólogo), um original de Fernando Dacosta
    Adaptação: Filipe La Féria
    Direcção: Filipe La Féria
    Intérprete: Carmen Dolores
    Realização: Eduardo Street, com Noel Cardoso e Fernando Pires [TEMPO DE TEATRO, 1985].

ECOS DA RIBALTA | 27 Dez. 2017 [>> RTP-Play]
  1. Peça "A Gaivota", de Anton Tchekov
    Tradução e adaptação: Alice Ogando
    Direcção: Alice Ogando
    Intérpretes (e personagens): Carmen Dolores (Nina), Rogério Paulo (Boris), Alice Ogando (Irina) Aura Abranches (Paulina), Alves da Costa (Pedro), Carlos Duarte (Constantino), Luís Filipe (Dr. Dorn), Maria Filomena (Masha), Luís Santos (Simão), Carlos Gonçalves (Ilia), Ivone de Moura (a criada)
    Assistência técnica: Francisco Vicente
    Produção: Castela Esteves
    Realização: Alice Ogando [RÁDIO-DRAMA, Nov. 1959].

ECOS DA RIBALTA | 21 Fev. 2018 [>> RTP-Play]
  1. Sete poemas de Rainer Maria Rilke, em tradução de Paulo Quintela (com versos de ligação da autoria de Miguel Trigueiros), recitados por Carmen Dolores e Manuel Lereno
    Assistência técnica: Manuel Sanches
    Realização: Manuel Cunha [POESIA, MÚSICA E SONHO, 1972].
  2. Poema "Os Atacadores", de Alexandre O'Neill, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  3. Poema "Se eu fosse...", de Irene Lisboa, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  4. Peça "Um Mês no Campo", de Ivan Turgueniev
    Tradução e adaptação: Ricardo Alberty
    Direcção e ensaio: Álvaro Benamor
    Intérpretes (e personagens): Carmen Dolores (Natalya Petrovna), Álvaro Benamor (Mikhail Alexandrovitch Rakitin), Brunilde Júdice (Anna Semionovna), Maria Emília Baptista (Lizaveta Bogdanovna), Carlos Fernando (Kolya), João Lourenço (Alexei Nikolaievitch), Santos Gomes (Matvei), Ivone de Moura (Vera Alexandrovna) e Assis Pacheco (Inácio Ilitch)
    Assistência técnica: Fernando Pires
    Montagem: Gomes Serra [TEATRO DAS COMÉDIAS, 1964].

ECOS DA RIBALTA | 28 Fev. 2018 [>> RTP-Play]
  1. Peça "Na Vida Como no Palco", de Clifford Odets
    Adaptação: Carlos de Evoramonte (pseudónimo de Victor Veres)
    Direcção e ensaio: Álvaro Benamor
    Intérpretes (e personagens): Assis Pacheco (Frank Elgin, o actor), Carmen Dolores (Georgie Elgin, a mulher do actor), Álvaro Benamor (Bernie Dodd, o encenador), António Sarmento (Phil Cook, o empresário) e Gabriel Pais (Paul Unger, o autor)
    Captação: Teixeira Alves
    Registo de som: Mendes de Oliveira
    Montagem: Jorge Santos [TEATRO DAS COMÉDIAS].
  2. Poema "O Som de um Piano Antigo", de João José Cochofel, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  3. Poema "É preciso saber porque se é triste", de Manuel Alegre, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  4. Poema "Meio-Dia", de Sophia de Mello Breyner Andresen, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  5. Poema "Sugestão", de Carlos Queiroz, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  6. Poema "Vivam, apenas", de José Gomes Ferreira, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  7. Poema "Canção", de António Pedro, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  8. Poema "Dez Reis de Esperança", de António Gedeão, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  9. Poema "Lusitânia no Bairro Latino", de António Nobre, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  10. Poema "Voz nos Campos de Almada", de Mário Cesariny, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).



Capa do livro "Retrato Inacabado", de Carmen Dolores (Lisboa: Edições 'O Jornal', 1984)



Capa do livro "No Palco da Memória", de Carmen Dolores (Lisboa: Sextante Editora, 2013)
Carmen Dolores encarnando Virginia Woolf, na peça "Virgínia", de Edna O'Brein, levada à cena no Teatro Nacional D. Maria II, em 1985, com encenação de Carlos Avilez, cenografia e figurinos de Ana Silva e Sousa.
Fotografia – Pedro Soares.
Design – Henrique Cayatte Design, com Susana Cruz.



Capa do livro "Vozes Dentro de Mim", de Carmen Dolores (Lisboa: Sextante Editora, 2017)
Carmen Dolores encarnando Helene Alving, na peça "Espectros", de Henrik Ibsen, levada à cena pelo Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia e figurinos de Ana Silva e Sousa, no Teatro Municipal Mirita Casimiro (Monte Estoril), em 1992.
Fotografia – Luísa Gomes.
Design – Manuel Pessoa.

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